Esta carta é redigida pelas mãos de um jovem limeirense, mas que contém o sentimento de indignação, asco e revolta de pessoas de todo o país que puderam assistir e acompanhar a repercussão de um acontecimento recente que ocorreu na câmara municipal da cidade, engajando políticos e intelectuais. Este escrito é dirigido à todes os vereadores do município, embora sabemos que nem todes são da mesma forma e corroboram com tal posicionamento. Sendo assim, a crítica é diretamente orientada para os vereadores que se recusam a reconhecer o seu papel enquanto tais, que se acostumaram ao poder, como bem exposto pelo cidadão Hamilton Fernando de Mello — que logo após foi ameaçado e silenciado. Assim, gostaria de excluir algumas pessoas da candidatura atual de minha crítica, como a vereadora Isabelly Maria de Carvalho, esta que realiza realmente o papel relevante e progressista na cidade, por exemplo.
Devido à limitação do espaço e do modelo a que me proponho escrever, gostaria de falar sobre o eclipse que paira sobre a cidade: o conservadorismo obtuso — perdoem a redundância — generalizado e o deficiente engajamento social por parte do poder público. Por um lado, é conhecido, segundo o pensamento de Nicolau Maquiavel, que a política é a disputa para acessar e se manter no poder. Por outro, também é mutuamente reconhecido que os tempos mudam, as ideias, as culturas e as instituições se transformam, não cabendo mais, atualmente, debater sobre as tarefas de um principado, mas versar sobre as condições democráticas de governo. Em suma, é sobre quem tem voz e quem é silenciado e/ou não pode ser ouvido. Calar alguém é violento, antidemocrático e se configura – para dizer minimamente – como autoritarismo.
Dessa forma, devemos advogar por um regime democrático que amplie a participação política. Logo, é necessária uma ampliação da esfera pública, garantindo mais vozes, mais diversidade e mais pluralidade. No entanto, quando um jovem negro adentra no debate público na Tribuna Livre, no dia 21 de agosto de 2023, defendendo a abrangência de um projeto social é logo hostilizado ao ouvir “não vai vir falar mal de vereador aqui” (vereador Sidney Pascotto, “Lemão da Jeová Rafá”, – PSC, o mesmo que votou favorável no projeto abjeto de “Escola sem partido”[1]) e “o senhor vai ter voz de prisão aqui” (vereador Anderson Pereira [2] - PSDB ). A crítica feita por Hamilton de que alguns vereadores “se acostumaram ao poder e ao invés de cumprirem com sua digníssima promessa…”, tornou exposta publicamente a quem a carapuça serviu.
Embora os problemas sociais da Câmara Municipal de Limeira sejam amplos e profundos, gostaria de tornar explícito o que está nas entrelinhas das falas dos vereadores: o 'racismo estrutural'. Como didaticamente explicado por Sílvio Almeida, o atual ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil: “a sociedade contemporânea não pode ser compreendida sem os conceitos de raça e de racismo” e “o racismo é sempre estrutural”, isto é, ele é um elemento que “integra a organização econômica e política da sociedade”. Ou seja, o racismo fornece os mecanismos para a reprodução da desigualdade e da violência que molda os modos de vidas sociais. Vale trazer que as práticas institucionais — protagonizadas por pessoas e suas ações — têm seus hábitos interrelacionados com uma estrutura social pré-existente, sendo o racismo parte constituinte de uma macroestrutura (a própria história brasileira evidencia tal fenômeno) que possui consequências e reproduções também microssociais. Assim: “as instituições são racistas porque a sociedade é racista”. Dessa forma, melhor se compreende o pensamento de determinados políticos.
Se analisada profundamente, política — ao longo de todo o espectro que a compõe — é algo mais ideológico do que técnico, e isso reflete diretamente nas falas, ações e, consequentemente, políticas públicas. Porém, ao mesmo tempo em que ela é elaborada e votada por representantes, ela é voltada para a população em geral e não restrita à base comunitária de determinado político que o elegeu. Isto é, não cabe — eticamente — ao vereador criar políticas públicas voltadas unicamente para o benefício de seu grupo, no qual frequenta e faz sua propaganda semanalmente — talvez cotidianamente —, por exemplo.
Mesmo que todos tenhamos ideologias, algumas são mais engajadas que outras nas questões sociais, isto é, algumas são mais inclusivas e outras excludentes. Cabe a reflexão crítica sobre a própria ideologia e o compromisso com o cargo público a qual se presta: sua decisão é uma decisão política, pública e social ou apenas uma reprodução individualista visando o bem pessoal e do próprio grupo, falsamente apoiada num discurso demagógico popular?
Há políticas públicas em peso contra moinhos de vento, como uma guerra cultural contra a ideologia de gênero (que não existe), por exemplo. Porém, tais práticas possuem consequências nefastas. Tomando outro exemplo prático: os progressos sociais na área da educação sexual que visam conscientizar e combater abusos e violências cometidos cotidianamente em todo o país. Quando um vereador escreve sobre a proibição “de qualquer material [...] ainda que didático” sobre a sexualidade das crianças, qualquer material que pode “estimular a excitação sexual”, visando não desvirtuar o que “se entende dos bons costumes e causar conflito no processo de educação e formação ministrados pelos pais e mães” (Projeto de Lei N° 109/2023, do município de Limeira-SP), faz um enorme desserviço e obstáculo no combate ao abuso infantil, pois ignora a educação sexual e também os dados: “83.571 (41,2%) dos casos de violência foram contra crianças (0 a 9 anos) e 119.377 (58,8%) praticados contra adolescentes (10 a 19 anos)”, sendo que mais de 70% dos casos de violência infantil ocorrem dentro dos domicílios, segundo dados do Ministério da Saúde.[3]
Em suma, há políticos que se colocam num suposto “grau zero” da ideologia e da violência que, aparentemente, amparados pelo poder público neles investidos, conferem uma suposta legitimidade e impunidade aos seus atos, mesmo quando estes, aparentemente, se configuram como antissociais e não consideram o próprio movimento de transformação cultural da sociedade. O que seus atos revelam é justamente o comodismo no poder, atuando contra uma concepção ampla de democracia, de igualdade, de direitos, isto é, desenvolvem políticas contra a própria sociedade. O ocorrido com Hamilton não é um caso isolado, mas parte de uma totalidade, uma estrutura extremamente desigual de constituição e participação política. Felizmente, o infeliz acontecimento veio à público, alcançou ampla repercussão e por pressão e vergonha popular, “mudaram” de opinião, convidando-o novamente à Tribuna Livre.
A política se constrói cotidianamente na esfera pública através do diálogo e do respeito visando o amplo bem comum da sociedade e a superação de suas desigualdades e preconceitos estruturais. Se vocês não estão prontos para isso, saibam que não vamos ceder. Uma outra forma de fazer Política é possível para quem está aberto ao diálogo e a transformação, mas vocês não estão prontos para essa conversa.
Limeirenses
Limeira, 4 set. 2023
[1]Mesma ocasião na qual o então vereador Clayton Silva (PSC) realizou um gesto de saudação nazista, em 2020. Posteriormente, o mesmo teve seu mandato cassado (depois a decisão anulada) e uma empresa lacrada pela polícia civil.
[2]É importante mencionar da transfobia protagonizada pelo vereador Anderson em 2017, hostilizando outra participante que realizou um protesto no momento.
[3]https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/05/18/brasil-registrou-2029-m...